Análise de Conjuntura Jan. 2024.

 

        Para além de uma análise meramente cientificista, este texto pretende mostrar como a nossa Política Cognitiva (Políticas de educação, especialmente o ensino superior e políticas de ciência e tecnologia) é incongruente com as reais necessidades da população, especialmente a mais pobre. Para isso ele foge do academicismo e chama a atenção para os aspectos mais relevantes da crise estrutural do capital. Em seguida ele apresenta a saída que temos diante da problemática. A Economia Solidária como estratégia de desenvolvimento social econômico. Contudo, o aprofundamento e complexidade da crise exige repensar a forma como as universidades e as demais instituições de ciência e tecnologia vem elaborando as suas políticas de ciência, tecnologia e inovação. 



    Como um dos legados malditos da ditadura militar, da década perdida e posteriormente com a década de ascensão neoliberal, a educação no Brasil hoje pode ser definida de uma forma geral como uma verdadeira tragédia. Pode parecer dura a palavra, mas tomo emprestada de João Manuel Cardoso de Mello, proferida em entrevista ao canal Opera Mundi. 

    Para além da baixa remuneração dos professores e demais profissionais da educação, as políticas têm sido geridas pelo viés da mentalidade empresarial, o que resulta em uma educação bancária.

Tomo como exemplo o relato de uma amiga professora da rede estadual uma de suas queixas: 

"Muitas crianças e jovens vão as escolas somente em busca da merenda, porque em casa elas não têm o que comer." 

É uma realidade para muitas delas que essa tem sido a única motivação para frequentá-las.

Vejamos como é analisada a questão da educação contemporânea por István Mészáros: 

[…] da maneira como estão as coisas hoje, a principal função da educação formal é agir como um cão de guarda ex-officio e autoritário para induzir um conformismo generalizado em determinados modos de internalização, de forma a subordiná-los às exigências da ordem estabelecida (MÉSZÁROS, 2008, p. 55).

        No ensino superior, pesquisa e pós graduação a situação é também de desolação. A universidade não tem sido devidamente valorizada nem pela classe dominante e nem pela classe dominada, ela é um enclave. Em parte isto ocorre por causa dos mitos da neutralidade e do determinismo da tecnociência, ainda muito presentes na comunidade de pesquisa. Dessa forma, a universidade brasileira se caracteriza como sendo disfuncional para a maior parte da população, especialmente a mais pobre.

        Ainda mais pelo fato de que a indústria nacional (empresário brasileiro) se interessa pouco pelas patentes que ela produz, as multinacionais menos ainda pois elas possuem suas próprias capacidades tecnológicas, seus laboratórios. Do total de empresas no mundo 70% do gasto em pesquisa é realizado por elas e os outros 30%, realizados por universidades e institutos públicos, estão a serviço delas (DAGNINO, 2014). A indústria julga que as ideias que as universidades produzem são “acadêmicas” demais para ela. Tal fato reflete a tendência para a mercadorização de tudo, ou seja, se não é mercadoria não é útil.

        O empresário nacional se interessa muito mais pelo mais valor absoluto, e isto é facilmente verificado como o salário mínimo no Brasil tem sido achatado, como a CLT foi destruída em anos mais recentes e como a justiça do trabalho foi negligenciada e mal tratada. Todas estas derrotas trabalhistas foram uma encomenda do capital, delegada ao Estado para serem executadas.

        Em uma condição periférica em que ocorre a superexploração do trabalho, as empresas privadas possuem baixo capital, tendo em vista a debilidade da relação oferta e demanda típica de um país agroexportador de produtos primários. Mas a maior prova de que o inovacionismo não vem dando certo nas universidades são as inconsistências que a Controladoria Geral da União vem apontando sobre as falhas do marco legal da inovação no Brasil. O retorno para o erário tem sido pífio, as patentes geram gastos excessivos para as universidades e baixíssima é a taxa de transferência de tecnologia.

        Dois eventos históricos do século passado traumatizaram profundamente o campo de esquerda do nosso tempo, e esta chaga parece não haver sinais de abrandamento. O primeiro, e o maior deles, foi a queda do socialismo real na URSS, ocorrido em função da degenerescência do socialismo real.

        O segundo foi a queda do muro de Berlim na Alemanha. A derrota ganhou um impulso extra a partir do momento em que a potência hegemônica (EUA) da época, com o seu monopólio imperial dos meios de comunicação, utilizou destes dois acontecimentos para potencializá-los sob a forma do cinema, da arte e do seu capital que comprou tudo, desde a dignidade de todo o Sul Global até mesmo a ideia surreal de que os EUA são bons, mesmo espalhando guerras, mortes e destruição em uma lista países (em especial naqueles ricos em petróleo).

        Entre 1945 a 2001 os EUA empreenderam nada mais nada menos que 81% das guerras ocorridas neste período, podendo ser alçado ao posto de “pai das guerras eternas”(séculos XX e XXI)1. Há um simples motivo para isso. Com a Segunda Guerra Mundial, este país emergiu como uma potência econômica, simplesmente por que perceberam, com essa experiência, e suas vantagens estratégicas de isolamento geográfico, grande extensão territorial e domínio de armas nucleares, que as guerras podem ser o principal motor da economia capitalista. Foi a segunda Guerra Mundial que "presenteou" os EUA com as inovações tecnológicas (radicais e incrementais) que foram sendo transbordadas do meio militar para a sociedade civil, a exemplo do SIRI, da internet, do celular, e muitas outras. 

        Assim abro a análise da conjuntura atual para a esquerda mundial, em especial no Brasil. Aquela crise de 2008 foi seguida de sucessivas outras crises econômicas e marca um momento histórico em que a ideia de crise cíclica do capital em que previa momentos de alívio deixa de existir. Na verdade o que temos hoje é um caráter cíclico de uma crise contínua, irreversível e irremediável, onde seus altos e baixos apenas representam os oscilações de uma mesma crise crônica.    

        Mas como sempre a esquerda brasileira age sobre os seus efeitos e não sobre as suas causas. A relação promíscua entre Estado, capital e trabalho ajuda a explicar o que István Mészáros chamou de sociometabolismo do capital, o que significa um conjunto de transformações sociais, econômicas e culturais que geram um equilíbrio perpétuo para que capital e Estado possam garantir que a exploração da força de trabalho esteja sempre sob o domínio de ambos.

        As crises alimentam o capitalismo, intensificando o seu caráter destrutivo. O sociometabolismo é uma expressão usada por Mészáros para explicar a capacidade de mutação das suas formas de exploração, quando ele se reinventa sob novas formas. A palavra metabolismo se refere ao conjunto de transformações bioquímicas que ocorre em um organismo onde ele processa, extrai, expele seus resíduos e obtém energia, acumula e etc. O capital é uma relação social que sofre mutações. Logo, a relação Estado, Capital e Trabalho sofre o que chamamos de sociometabolismo do capital. O Estado e o Capital modificam suas formas de funcionamento para manutenção da extração de mais valia, cria e reinventa essas formas, como é o caso do capitalismo financeiro, as guerras e as diferentes formas de expropriação.

        A própria economia capitalista deixou de ser a solução para os capitalistas, a solução passou a ser a crise. Estamos na crise das crises, a mãe de todas as crises. Ela abre espaço para aquilo que chamo de “degenerescência” da lei do valor.

        Nela, o tempo de trabalho determinava o valor da mercadoria de forma predominante. Atualmente, vem se configurando novas formas de exploração da força de trabalho em que as horas trabalhadas não possuem qualquer importância. Elas foram substituídas pelo modelo just in time, ou sob a forma de entregas de tarefas, camufladas pela pejotização2.

        Nas empresas, mesmo o trabalhador com carteira assinada, é obrigado a cumprir “metas” e não mais “horas” com vistas a máxima ampliação do mais valor absoluto. Sob novas formas, a economia financeira, economia do conhecimento, economia verde e outras, o capital imprime formas sociometabólicas de exploração onde a mercadoria adquire outras formas sociometabólicas. O conhecimento é um tipo de mercadoria, assim como o corpo, e até mesmo o sangue3. Milhares de pessoas que não tem o que comer, se veem obrigadas a vender seus órgãos e até mesmo o seu próprio sangue para sobreviver.

        A introdução cada vez maior de conhecimento tecnocientífico no processo de trabalho amplia os lucros do capitalista, e o conforto que é “dado” ao trabalhador (resultado de sua mesma superexploração), serve para justificar os baixos salários da esmagadora maioria da população.

        Diante deste cenário de terra arrasada, estamos vendo a ideologia neoliberal impregnar todos os meandros da sociedade. O Estado, com a disseminação de práticas de vigilância dos servidores públicos, seja por meio de ponto eletrônico, produtivismo neoliberal, ou de assédio moral.4

        Os sindicatos, destruídos pelo peleguismo, foram desarticulados pelas medidas dos governos Temer e Bolsonaro de tal forma que o medo e a apatia os dominou por completo. Pelo jeito que a coisa anda, quando muito, a forma de luta “inovadora” que o sindicato deverá imprimir em um futuro próximo é oferecer cursos de empreendedorismo aos seus filiados, já que as próprias universidades decidiram que essa mentira deve ser contada aos seus alunos como sendo parte dos temas transversais e das grades curriculares.5

        A ultradireita mundial conseguiu criar uma “internacional de direita”. Ela entendeu antes da esquerda, que o combate ao estatismo reflete um dos desejos das massas dos trabalhadores. O discurso de que através do poder do Estado seria possível controlar a fúria do capitalismo caiu por terra. A sua queda começou pelo desastre causado por Stálin na antiga União Soviética. Milhões de mortes, perseguições políticas e concentração de poder.

        Do outro lado, o nazismo imprimiu a cruzada contra o comunismo como a sua principal bandeira política, e por um acidente da história um ditador sanguinário venceu o nazismo. Muitos ainda tentam ressuscitar e heroicizar Stálin por este feito, insistindo em um pensamento que está defasado.

        O marxismo ortodoxo mesmo com todos os seus méritos, deixou um ranço stalinista em boa parte da esquerda mundial. Isto é facilmente notado no Brasil quando se observa o comportamento personalista, eleitoreiro, que busca anular adversários políticos através de métodos que não possuem nenhuma sintonia com o pensamento humanista e coletivista de esquerda.

        Ademais, o mito do determinismo tecnocientífico encontra espaço fértil no campo da esquerda de nosso tempo. Ela acredita que a ciência e a tecnologia serão capazes de resolver todos os problemas e nos levarão a um progresso econômico sem fim, sem enxergar que a estratégia do emprego e salário tem sofrido um desgaste profundo com as transformações mais recentes.

        Para isso ela se apega aos mesmos dados empíricos, índices e parâmetros pelos quais nada dizem a respeito do desenvolvimento econômico e social outrora desejado pela social-democracia, mas dizem muito sobre o crescimento econômico que amplia as desigualdades, a concentração de riqueza, a pobreza e a miséria. Um exemplo é o PIB, cheio de falhas e imperfeições. 

        Não podemos deixar de mencionar a crise climática de nosso tempo. Cientistas têm alertado que as temperaturas de 2023 foram as maiores de 125 mil anos. As previsões climáticas que foram feitas para 2030 se anteciparam para este ano. Isso significa que o ano de 2024 poderá ser ainda mais quente.

        Como já é de amplo conhecimento, as mudanças climáticas podem desencadear extremos, chuvas anormais, secas intensas, tornados, furacões, enchentes e etc. Além disso, elas também são responsáveis em grande parte pelas migrações descontroladas. Com isso, verdadeiros campos de concentrações de refugiados são preparados por países ditos civilizados para receber homens, mulheres, crianças e idosos, contidos por arame farpado e cercas elétricas, além de tortura privações e violências diversas.

        O mito do determinismo tecnocientífico, que também é reproduzido por grande parte da comunidade de pesquisa, faz crer que através da ciência boa, pura e verdadeira conseguiremos reverter, através das energias verdes e da descarbonização “a hora da vez dos dinossauros” que a humanidade plantou para si mesma.

        Em um pronunciamento, uma Ministra fala em zerar o uso do petróleo. Não que a ideia seja ruim, o problema é que ela não encontra fundamentação com a realidade. Além dos combustíveis a sociedade moderna depende do petróleo para a produção de plásticos, medicamentos, tintas, vernizes, asfalto, betume e muitos outros produtos de uma parte da indústria que se consolidou: a petroquímica.

        Há muito tempo, as cadeias produtivas desse setor encontraram sua path dependence na virada do século XIX para o século XX, de tal forma que hoje é praticamente impossível mantê-las sem a exploração de petróleo. Para que a Tecnociência Capitalista pudesse criar novas “tecnologias” capazes de conformar cadeias produtivas não baseadas no petróleo, seria necessário muito tempo (20, 30, 50 ou mais anos) e nós não temos mais tempo.

        Mesmo que toda a emissão global de gás carbônico parasse em 2024, os efeitos do aquecimento global ainda seriam sentidos por alguns anos. Até lá, outras formas de poluição serão ampliadas, seja pela via da política neoliberal, seja pela via da necropolítica.

        Porém, sabemos que o ideal de progresso tecnológico/econômico é tão arraigado em nossa sociedade que isso não é possível. Medidas jamais vistas de austeridade deveriam ser aplicadas para uma economia global de decrescimento. O estrago está feito, e o rio corre sem parar. O capitalismo pode ser comparado a um monstro incontrolável que devora tudo o que está em sua frente.

        É fato notório na história das tecnologias e revoluções industriais a ambivalência da tecnociência. As tecnologias são coisas carregadas de políticas, elas são tecnopolíticas. Elas nunca estão desprovidas de interesses e valores, elas são ambivalentes, assim como a tecnociência. O filósofo Edgar Morin reconhece o caráter ambivalente da ciência (tecnociência).

        Em Algo Nuevo Abajo el Sol: historia medioambiental del mundo de John R. McNeill descreve isso muito bem, como a lentidão dos cavalos e carroças, que causavam sérios transtornos para as cidades com suas fezes, urina e cadáveres foram substituídos pelos carros, tecnologia que foi celebrada como um grande feito na época, mas que hoje causa transtornos muito maiores para as cidades, como a poluição, os engarrafamentos e os acidentes trágicos.

        Quando um problema surge e é resolvido, sempre haverá outro problema para ser resolvido. Esta é tragédia não reconhecida das tecnologias, impedida de ser aceita pelo fetichismo que ela promove.

        O que todas essas histórias, aparentemente desconexas podem nos dizer? Basicamente é que estamos diante de um novo cenário, com contornos jamais vistos. Encurralada pelo medo, apatia e imobilização provocada pelos governos neoliberais e de ultradireita, a esquerda se vê sem referências para seguir. Ela não tem mais o estatismo stalinista que fracassou, e também não existe mais o sopão das 20h. Também não existe mais aquela perspectiva do estado de bem estar social, e nem a via do empreendedorismo como salvação.

        A condição periférica, assolada pelo colonialismo que se reinventa sob a forma de colonialismo digital, o subdesenvolvimento que é alimentado pela dependência cultural da América Latina não formam ambientação para velhas alternativas de sobrevivência. Então, em que devemos acreditar? Qual a via possível?

        A única alternativa que nos resta é sonhar o sonho de Paul Singer, de Paulo Freire, Darcy Ribeiro e outros tantos. É resgatar princípios e valores que foram perdidos pelo avanço do neoliberalismo: solidariedade, democracia, cidadania, autogestão, amor e etc. Mas assevero que devemos ser pragmáticos e exigir do Estado aquilo que ao povo foi prometido. Exigir da economia nada mais nada menos que as trocas justas e a dignidade humana acima do lucro. 

    Nesse sentido é que é preciso radicalizar, mobilizar. A esquerda tem como principal desafio hoje, provar que não está morta e defender uma via que não esteja nem alicerçada no estatismo e nem dependente da empresa privada, com as suas queixas sobre externalidades negativas quando se trata da conservação do meio ambiente e da inclusão social. 

A Economia Popular Solidária, defendida por pessoas comprometidas com a educação popular, com o pensamento de Paulo Freire e outros tantos, deve convergir em direção a formas de produção por meio de organização autogestionária de trabalhadores e propriedade coletiva dos meios de produção, seguindo os valores e princípios da democracia, participação, solidariedade e respeito ao meio ambiente. Trata-se da alternativa mais promissora que temos, apesar de ser considerada utópica pelos pessimistas ela tem se mostrado incrivelmente viável. 

Contudo, para que ela possa ser atendida em suas demandas cognitivas tecno-produtivas ela vai precisar de uma nova plataforma cognitiva de lançamento, diferente desta que temos hoje (Tecnociência Capitalista) que visa atender somente aos interesses do ator social "capitalista", ela deverá ser orientada a atender os Empreendimentos Econômicos Solidários e é denominada de Tecnociência Solidária. 


2. Forma de exploração do trabalho que imprime ao trabalhador o papel de empreendedor de si mesmo, para contornar a implicação de direitos trabalhistas.

5https://www.contemporanea.ufscar.br/index.php/contemporanea/article/view/1071

DAGNINO, R. Tecnologia Social: contribuições conceituais e metodológicas [online]. Campina Grande: EDUEPB, 2014, 318 p. ISBN 978-85-7879-327-2

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