"Ciência Moderna" e Tecnociência Capitalista: Uma crítica a Tecnociência Capitalista e a forma como ela trata saberes tradicionais, religiosos e populares.

 

Venho refletindo sobre a forma como as pessoas se referem aquilo que é ciência ou não é, aquilo que é científico ou não é. 

É gozado como as pessoas se apropriam da expressão “ciência” quando se quer vencer um debate e se diz que os seus argumentos são científicos, ou são baseados em ciência.

Essa afirmação era feita por um dos grandes intelectuais da América Latina na década de 1970, o argentino Amílcar Herrera. Vou utilizá-la para abrir este texto, para ser mais didático.


Com o objetivo de descontruir essa apropriação do termo, que a meu ver é indevida, vou utilizar alguns argumentos tendo por base autores de grande calibre.

Para introduzir os meus argumentos primeiramente devo explicar o porquê este uso se caracteriza como sendo indevido.

A chave do raciocínio começa pelo fato de que a ciência, diferentemente do senso comum, ou do pensamento religioso, tem como um de seus pilares, tal como ela foi definida por René Descartes a partir da sua concepção muito particular de “método científico”, a opção pela dúvida metódica, por ele mencionada como sendo o “ceticismo organizado”. Mas, sendo a “dúvida” a sua base epistemológica, por quê ela deveria remeter a “certezas”? Essa é a chave.

Conforme Morin (2021), são três os princípios do "Discurso sobre o Método":

1. Nunca aceitar coisa alguma como verdadeira, [...] fazer um levantamento completo antes de qualquer conclusão, nunca aceitar de forma precipitada qualquer assertiva; 

2. Divisar cada uma das dificuldades, que examinarei em tantas parcelas quanto seja possível e requerido para melhor resolvê-las; (divisionismo, fragmentação)

3. Conduzir meus pensamentos por ordem, começando pelos assuntos mais simples e mais fáceis de conhecer, para atingir, pouco a pouco, como que degrau por degrau, o conhecimento dos assuntos mais complexos [...]; (reducionismo)

Voltando a "chave de raciocínio", ela ocorre devido a forma como se configurou historicamente a “ciência moderna” já que os estudiosos dos séculos XVI e XVII e os iluministas do início do século XVIII supervalorizaram a “razão instrumental” em detrimento de outras formas de saber.

Muitas foram as promessas do iluminismo, mais de 300 anos depois, podemos dizer que muitas delas não foram cumpridas. Isso tem corroído o velho paradigma da Tecnociência Capitalista. 

Nessa época o paradigma dominante que era teocêntrico, passou a ser antropocêntrico. Não que eu defenda a volta do paradigma teocêntrico, mas defendo na verdade é o paradigma biocêntrico, onde a natureza seja o centro dessa nova Tecnociência, a qual estamos denominando de Tecnociência Solidária. 

Para ampliar a explicação, resgata-se a acepção mais elementar de ciência, cuja etimologia da palavra deriva do vocábulo “scire” (do latim “scientia”) que significa “saber”.

Assim, precisamos considerar que existem saberes que não pertencem à ciência, como as experiências subjetivas e conhecimentos populares, mas o fato de não pertencerem à “ciência moderna”, não se traduzem em formas ilegítimas de conhecimento, mesmo apesar de pertencerem a categorias epistemológicas distintas, é inegável o fato de que elas possuem a sua própria epistemologia não necessariamente baseada nos postulados cartesianos. Por qual motivo somente aqueles três postulados cartesianos deveriam ser considerados válidos? 

A resposta que estamos colocando é muito clara. Este paradigma cartesiano é sustentado pela forma de organização econômica hegemônica capitalista, pela qual ela se presta e é capaz de demandar da Tecnociência Capitalista o seu show de horrores. Logo, a superação do paradigma econômico deverá ser acompanhada da superação do paradigma cognitivo. São como duas amarras que se entrelaçam.

Como afirma Ziman (1979, p. 17), “[...] querer dar uma resposta à pergunta:
O que é Ciência?” demonstra tanta presunção quanto tentar definir o sentido da própria vida.”

Mesmo assim vemos muitos (que se dizem cientistas) que são respaldados pelos seus centros de produção de conhecimento da Tecnociência Capitalista, se colocarem nessa categoria como detentores dessa resposta. Como se fosse simples, além disso se colocam como autoridades científicas.

Na sociologia da ciência há uma derivação de uma série de estudos, quase óbvia e conceitual, o fato de que o cientista não pode ser considerado uma autoridade. Se for isso, ele o é por causa da sua escolha ideológica, mas não da sua capacidade de produzir conhecimento, que é ambivalente.

Autoridades deveriam ser somente guardas, fiscais, policiais, ou seja, aquelas pessoas que são ligadas a aparelhos ideológicos do Estado e, principalmente, as que representam os aparelhos repressores do Estado. 

Um cientista pode e deve ter ideologia, fato imposto pelas ""leis da sociologia" (se é que elas existem), aliás muito mais complexas que as leis das ciências exatas e da terra. Ele nunca será destituído de ideologia.

Ele é um pesquisador, que pensa por determinados interesses e valores. Se quisermos considerá-lo como uma autoridade cai por terra toda tese cartesiana do ceticismo organizado. E mais ainda, a falseabilidade de Karl Popper. 

Para Morin (2010), é a única questão para a qual ainda não se tem resposta (sobre o que é ciência).
“É por isto que, mais do que nunca, se impõe a necessidade de autoconhecimento do conhecimento científico, que deve fazer parte de toda política da ciência, como da disciplina mental do cientista.” (MORIN, 2010, p. 21).

Heidegger talvez tenha sido o primeiro filósofo a afirmar que a ciência moderna (tecnociência capitalista) não é capaz de pensar sobre si mesma. Em outras palavras isso significa que ela é limitada, ainda assim, com as suas limitações, ela é utilizada para justificar os genocídios e ampliar os epistemicídios. 

Heidegger, para além da crítica a limitação, a obsessão a "quantofrenia" (Sorokin), quis se referir a incapacidade de superar a ambivalência da ciência e da tecnologia. Incapaz de superar a produção de conhecimento tecnocientífico para as guerras, para destruição da natureza, para a construção de mega hidrelétricas em terras indígenas, para a propagação da necropolítica, para a criação de novas estratégias mais eficientes de obsolescência programada, novos agrotóxicos mais eficientes e mortais, novas estratégicas de marketing para a criação de metas de consumo mais exacerbadas e "lucros extraordinários", etc. 

 Assim, a máxima de Galileu de que os "fenômenos só devem ser descritos com a ajuda de quantidades mensuráveis" vem sendo questionada na medida em que é questionada a tecnociência capitalista. Nesse aspecto, ressalta-se a importância de que na "Tecnociência Solidária" os dados qualitativos sejam colocados em um mais elevado patamar de relevância, já que o ator por ela responsável é um coletivo autogestionário de trabalhadores.

Minha interpretação é de que esta "ciência" da “razão instrumental” (Horkeimer) não possui a atribuição de “filosofar” sobre ela mesma, que significa que o método científico adotado e desenvolvido pela “ciência moderna” e, conceitualmente, por essa “Tecnociência capitalista” também manifesta seu lado irracional. Ela não é composta somente de elementos e resultados racionais, ela também produz muita ignorância. Atualmente existe uma vasta literatura a respeito disso, a qual deverei mencionar em outros textos. 

Contudo, cabe a pergunta: seria a filosofia moderna capaz de fazer esse papel de questionar os limites da tecnociência capitalista? até que ponto esta filosofia é capaz de provocar uma crítica capaz de alterar suas formas de limitação, quantofrenia, superespecialização e esoterismo. Ou será que este caminho é mesmo plausível? 

Conforme Morin (2021) o saber está se tornando cada vez mais esotérico (acessível somente aos especialistas) e anônimo (quantitativo e formalizado). Isso faz com que se reforce a pergunta da estudiosa americana indiana Spivack: "Can the subaltern speack?"

A minha interpretação é de que a participação social na construção do conhecimento é ainda mais difícil que a participaçao social na elaboração de políticas públicas. A incidência dos movimentos sociais é cada vez mais difícil em um mundo digitalizado, onde as tecnologias de ponta e a ciência  de alto prestígio dominaram as pautas em praticamente todas as instituições capitalistas. 

Um exemplo é "O Plano Plurianual (PPA)" – previsto no art. 165 da Constituição Federal, é um dispositivo legal que vem sendo adotado nos governos do PT, mas mesmo assim, a pesquisa de opinião que se faz (on line) ainda está muito aquém de uma amostra estatisticamente representativa.

Mas voltando ao assunto:

A "Ciência moderna”, a qual entendo como aquela que começou no momento em que Cristóvão Colombo pisou na América (e se desenvolve até os dias atuais sob a sua forma mais destrutiva), como sendo equivalente a “Tecnociência Capitalista”, expressão cunhada por Renato Peixoto Dagnino em seu livro cuja segunda edição foi publicada em 2020.

Os argumentos que iniciam esse texto servem para chamar a atenção sobre como nós estamos adaptados a uma ideia de ciência (entenda-se tecnociência) equivocadamente otimista. Essa concepção a considera como neutra, pura, boa, verdadeira, capaz de determinar um futuro irreversivelmente brilhante para a humanidade.

Muitas pesquisas indicam que está ficando cada vez mais difícil esconder o epistemicídio (e genocídio) que a própria epistemologia da Tecnociência Capitalista tem causado.

Isso tem ficado cada vez mais claro com a crise das democracias liberais do ocidente, com a mutação tecno-antropológica suicida provocada pelas tecnologias digitais (leia-se tecnociências digitais), por meio da acentuada precarização do trabalho em todo o mundo (nunca jamais vista e subnotificada), pela geração contínua de desemprego e subemprego, pela ascensão do fascismo, especialmente nos centros produtores do conhecimento, os quais também tem sido produtores de desinformação, etc.

O aspecto mais importante é que, frequentemente, a ciência tem sido utilizada para fins não pacíficos, distante dos ideais humanistas ou de qualquer outra pretensão coletivista. A rigor, nenhuma tecnologia é produzida pensando no bem da humanidade, mas sim em uma pretensa capacidade de “geração de renda”, que na verdade é concentrada nas mãos de poucos e não produz desenvolvimento social.

Dessa forma, é preciso alertar ao público leigo em geral que ela não pode ser alçada a uma posição de detentora da verdade, uma vez que ela não está livre de interesses e valores. Ela não é neutra.

Para melhor compreensão desses argumentos tomo a liberdade de usar uma expressão que entendo mais adequada para estar mais a altura da complexidade do tema.

Tendo em vista a realidade social e econômica pela qual ela se desenvolveu historicamente, nós podemos dizer, de forma simplificada, que o seu ator social hegemônico é o “capitalista”. Portanto, nós a estamos denominando de Tecnociência Capitalista.. 

Fazendo menção ao conhecimento indígena, a Tecnociência Capitalista está ignorando o fato de que o "céu vai cair sob nossas cabeças", como afirma Ailto Krenak, se referindo ao alerta dos xamãs. Se trata de um dado qualitativo ignorado pelo quantitativismo moderno.

A sociedade precisa ser orientada a uma tal compreensão, que não importa se é ou não ciência, o que importante é se, determinado conhecimento, é socialmente, culturalmente ou ambientalmente relevante e benéfico ao ser humano.

Ademais, cabe afirmar que na minha observação participante ao longo de vários anos, passando por religiões distintas, espiritismo, espiritualismo, catolicismo e religiões de matriz africana, é possível constatar que é muito rasa a análise, que se tornou muito comum de dizer que tudo se resume a um plano de poder, manipulação e dominação. 

As religiões, bem como os conhecimentos ancestrais, tradicionais e populares, superam em muito essa banal noção carregada de preconceitos. 

Trata-se de um assunto de extrema complexidade, mas na altura da complexidade dos problemas que se avolumam, faz-se muito necessário ampliar o diálogo. 

O conjunto desses conhecimentos poderia ser estudado em uma plataforma cognitiva do tipo "Tecnociência Solidária" cuja base deverá ser a identificação de demandas cognitivas populares. Ela servirá como base de lançamento da Economia Solidária. Ela é a prova material de que uma economia não capitalista e anti capitalista é perfeitamente possível. 

REFERÊNCIAS

Alves, M. A. B. (2024). Identificação de demandas cognitivas e o potencial da Tecnociência Solidária: Uma via de enfrentamento para a condição periférica.

ZIMAN, J. Conhecimento público. Tradução Regina Junqueira. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Ed. USP, 1979.

MORIN, E. Ciência com consciência. 13. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.

MORIN, E. A cabeça bem feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. 27 edição. Rio de Janeiro: Bertrand Russell. 2021.

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