Como começou minha história na pesquisa sobre política científica e tecnológica
Na visão de Herrera (1971), haveria uma dominação indireta por parte dos centros de poder mundial que seria um dos fatores que levariam a um papel paradoxal da ciência latino-americana, que ao contribuir muito bem para o “progresso tecnológico” ao mesmo tempo atuaria de forma contrária ao que ele chamou de “progresso humano”. Este último se refere à melhoria na qualidade de vida, educação e demais fatores de desenvolvimento social e econômico, essenciais em qualquer sociedade.
Bem antes de me informar a respeito desta importante característica da realidade latino-americana, lá nos idos de 2013 a 2016, quando tive a oportunidade de trabalhar como diretor do Núcleo de Inovação da Universidade Federal do Tocantins, minhas observações e reflexões, quanto a pertinência do depósito de patentes naquele contexto, me levaram a indagar a respeito da relevância social e econômica para o Estado do Tocantins destes mecanismos legais de monopólio criados pelo Estado neoliberal. Nesse sentido, para mim a patente como monopólio do conhecimento tecnocientífico somente faria sentido se pudesse gerar empregos, distribuição de renda, seja sob a forma de trabalho ou sob a forma de melhoria substancial na qualidade de vida da maior parte da população, principalmente a mais pobre. Mas logo percebi que isso não era possível na prática. Basta constatar “o trabalho de formiguinha” que fazíamos no NIT da UFT, e como é difícil essa tarefa. Devido ao seu caráter muito peculiar e restrito, o qual fui constatar no doutorado (que pude ter acesso a partir de 2020 no Doutorado em Política Científica e Tecnológica da Unicamp, especialmente nas aulas do professor Dr. Renato Peixoto Dagnino) que resultava da política hegemônica implementada (liderada) por um grupo relativamente pequeno dentro da comunidade de pesquisa, que refletia aquela ideologia do empreendedorismo que permeia nossa sociedade capitalista, o qual Renato Dagnino chama de “alto clero da ciência dura”. Naquele momento eu cheguei a fazer parte do FORTEC (Fórum Nacional de Gestores de Inovação Tecnológica) uma associação de CNPJ próprio que representava a consubstanciação dos interesses e valores da maior parte dos pesquisadores, principalmente os das ciências duras, ligada ao ideal de neutralidade e de determinismo da tecnociência. Outro ponto que me levou a questionar aquela política que eu e meus colegas de trabalho éramos induzidos a orientar, especialmente junto aos professores e pesquisadores (já que alguns deles ainda não estavam totalmente convencidos dela, porém a maioria aceitava sem contestações), era o fato de que ao pesquisar no banco de dados de patentes do INPI, naquele momento, a quantidade de depósitos de patentes residentes no Estado era ínfima em relação ao restante do país (e ainda permanece pequena), algo como no máximo 11 depósitos ao longo de mais de 20 anos, sendo a maioria expiradas ou extintas, outras pertencentes a empresas que nem sequer existiam mais. O Estado do Tocantins teve uma história de muito sofrimento do seu povo, principalmente quando era apenas o “norte goiano”, antes de 1989. Período em que a economia era basicamente ao do latifúndio que superexplorava a mão de obra, escrava ou quase escrava. Levados nos caminhões para trabalhar nas fazendas, os trabalhadores eram transportados sem nenhuma segurança, levados nos chamados “paus de arara”.
Um exemplo que comecei a observar, e que quase ninguém dava atenção devida era que em 2015 a Unicamp possuía 1000 depósitos de patentes e apenas 60 contratos de licenciamentos, e esta proporção se reproduzia de forma semelhante a medida em que os depósitos de patentes aumentava nas universidades. Ainda é notória a discrepância entre número de depósitos de patentes e o número de processos de transferência de tecnologia em todas as universidades públicas brasileiras. Isso me levou a perguntar: Por qual motivo a universidade, não sendo um organismo de caráter privado, deveria sê-lo? A convergência dos interesses da universidade pública aos interesses de empresas privadas não levaria esta a desvirtuar o seu papel social? O dado que tínhamos naquele momento, Organização Mundial da Propriedade Intelectual, era que a cada 10mil patentes no mundo, resultava em apenas 1 inovação de alto impacto econômico.
O professor Dr. Renato Peixoto Dagnino já explicava que, após o período de (re) democratização (1985 a 1989), as políticas neoliberais de austeridade fiscal se aprofundaram no Brasil, especialmente a partir da década de 1990, o que fez com que as universidades públicas abandonassem visões de personalidades intelectuais importantes como Paulo Freire e Darci Ribeiro e partissem para políticas de aprofundamento da autonomia financeira universitária por meio de um possível e (ou parcial financiamento) por parte das empresas privadas que arrefeceria as suas contas, tendo em vista a redução drástica das verbas e o sucateamento. Isso fez com que a universidade pública fosse obrigada a metamorfosear o papel social que ela deveria desempenhar, abrindo espaço para a concepção de um novo “papel social”, não alinhado com as demandas da população mais pobre, mas sim com a da Economia Industrial da Inovação.
Nas aulas do doutorado, me impressionavam as sábias palavras do nosso Mestre (Dagnino), a quem ele atribuía a Jorge Sábato, outro importante intelectual do PLACTS. “Existem 3 formas de ganhar dinheiro com tecnologias: roubar, copiar e comprar”.
A primeira forma diz respeito a diversos eventos registrados na história (principalmente a partir da Segunda Guerra Mundial). Quando os EUA, eventualmente acusam a China de roubar suas patentes, ou vice-versa. Quando houve a operação paperclip após derrota da Alemanha no final da 2a Guerra Mundial, que levou os EUA a salvaguardar cerca de 2mil cientistas nazistas em seu território, oferecendo a eles cargos em universidades e centros de pesquisas renomados, devido aos interesses estratégicos que eles representavam. E quando a URSS também percebeu a oportunidade e recolheu aqueles que mais tarde os ajudariam a desenvolver a bomba atômica e até mesmo os mísseis balísticos que eles possuem e quase fazem render a OTAN, diante de seu arsenal. Tecnologia única no mundo que supera a de todos os países avançados neste quesito. Vejamos o caso da Coréia do Sul que teve enorme apoio dos EUA para atingir seu catching up tecnológico e se tornar tão competitiva como os centros mais avançados da Europa. E sua propaganda funcionou muito bem como “vitrine do capitalismo”, criada para justificar a máquina do imperialismo, que hoje mergulha numa crise de desemprego, informalidade, precarização e endividamento das famílias.
A prática da cópia de patentes e de outras tecnologias existe desde a primeira revolução industrial e das primeiras leis de proteção intelectual, e foi exatamente por causa dessa saída que as leis de propriedade industrial (e intelectual) se expandiram e se tornaram cada vez mais sofisticadas, levando a criação dos diversos bancos de dados internacionais e sistemas altamente seguros e sistematizados de proteção do conhecimento. Foi assim que se criava o monopólio do conhecimento por meio sistemas legais, conformados a partir de tratados internacionais, que existe hoje em dia.
Já a prática da compra de tecnologias é interessante apenas para aquelas megaempresas, grandes monopólios e oligopólios. São os empreendedores schumpterianos os grandes inovadores. Aqueles que não tem nada a perder e arriscam tudo. Pessoas visionárias como Steve Jobs e Elon Musk. Os pequenos talvez sejam os mais importantes no processo inicial da inovação. É o caso de Mark Zurkerberg que era apenas um estudante (sem dinheiro no bolso) quando começou a desenvolver o facebook. E Bill Gates que era apenas um estudante nerd, tímido para conversar com as moças da universidade e cheio de espinhas no rosto. Mas empresas grandes como as Big Techs, nem se interessam tanto em gerar inovações tecnológicas (quero dizer que é menos do que se parece), uma vez que a P&D é de alto custo e muitas vezes dependem de investimentos governamentais, como foi o caso do desenvolvimento das primeiras vacinas anticovid e das tecnologias que derivaram da economia de guerra, é o caso do Google e da internet.
Já nos países da América Latina, devido a sua condição periférica, estão entre os piores países para quem deseja inovar. A não ser que a inovação já esteja pronta e possa vir de fora, com financiamento capaz de custear sua difusão tecnológica e gerar os “lucros extraordinários”. Assim ela poderá encontrar um importante mercado consumidor, mas não o melhor. Digo isso pois há um problema de oferta e demanda de tecnologias nos países de condição periférica, uma vez que é difícil vender e, ao mesmo tempo é difícil comprar, pois se torna difícil a fabricação própria. Isso ocorre devido a marcante desigualdade social, pobreza e baixa renda per capita em relação aos países ditos avançados. Esta condição periférica reflete uma coexistência de formas arcaicas de produção (escravismo, pré-capitalismo e etc) com formas mais modernas. É aquilo que economistas cepalinos chamavam de Belíndia (expressão criada por Celso Furtado para se referir que existem dois “brasis”, um muito atrasado que seria uma espécie de Índia e muito avançado que seria um tipo de Bélgica). Para acrescentar, resgato aqui as palavras do intelectual Amílcar Herrera que introduz esse texto.
Disso deriva a escassez do tecido social na América Latina, ou seja, a dificuldade que as universidades e centros de pesquisa apresentam quando o negócio é responder às necessidades básicas da população, principalmente a mais pobre, no sentido de criar soluções para os problemas tecnocientíficos relacionados ao consumo e a produção. Assim, a empresa privada brasileira tem enorme dificuldade de inovar, vislumbra seu lucro de forma muito mais eficiente apenas por meio da mais valia absoluta (na produtividade do trabalhador, pela estagnação do salário mínimo, por exemplo) e assim, quando quer inovar o faz pela compra de máquinas importadas, o que agrega pouco em termos de inovação tecnológica. Assim, alimenta-se o ciclo de exportador de matérias-primas e importador de industrializados. Disso resulta, de forma contraditória, uma inteligência competitiva da empresa privada brasileira, pois ela o faz porque é o melhor caminho.
O estoque de patentes das universidades é cada vez maior, na medida em que elas estão sendo incentivadas a tal, com a cultura do empreendedorismo e a cultura da inovação. A UFPR sozinha tem mais patentes que a EMBRAPA, como se observa na figura a seguir:

Fonte: JORNAL DA USP (2019)
A própria matéria do Jornal da USP de onde veio a figura é ilustrativa, nos faz uma provocação sutil sobre o que devemos fazer com estas patentes. A discussão que deriva disso é que as universidades não são conhecidas pelos pobres (tendo em vista a dificuldade de acesso, mesmo com as políticas de ampliação que se deram nos governos do PT), uma vez que estas tecnologias, sob a forma de patentes, não respondem aqueles problemas sociais crônicos (ou respondem de forma paliativa e associada aos interesses da iniciativa privada), e acrescentamos mais: as universidades não são valorizadas pelos ricos e consequentemente, pelas classes proprietárias. Os ricos tem dinheiro suficiente para pagar mensalidades caras em cursos muito procurados como os de medicina e engenharia para os seus filhos. _ “Ah, mas se ele fizer numa pública é melhor.” Dada a qualidade que é inegável. Claro, pois são de alto nível para aquilo que se pretendem, pois emula aquela dos países avançados. A sua qualidade é indiscutível, mas o que se discute pouco é a “relevância” da pesquisa para a sociedade como um todo, tendo em vista aquela peculiaridade periférica que mencionamos anteriormente.
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